sexta-feira, 4 de abril de 2014

Fernando Pessoa

A LITERATURA DRAMÁTICA é uma subespécie de literatura narrativa, e esta uma espécie do gênero literatura. A literatura é a expressão verbal de um temperamento; a literatura narrativa a forma objetiva dessa expressão verbal; a literatura dramática a forma maximamente objetiva — ou seja, a forma sintética dessa expressão objetiva. 

Um drama não é mais que um romance na sua forma máxima de síntese possível. Ê por atingir esta objetividade máxima que ele pode receber a aparência de vida, isto é, que ele pode ser simulado num palco por pessoas a que se chama atores.

As qualidades possíveis do drama resultam, portanto, de três origens. Há as que ele tem em comum com todas as formas literárias, visto que ele é literatura; há as que ele tem, mais particularmente, em comum com todas as narrativas literárias; e há as que lhe são próprias como forma maximamente sintética da narrativa literária.

Na Floresta do Alheamento

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver, diz-me que é muito cedo ainda. . . Sinto-me febril de longe. Peso-me não sei por quê. ..
Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre um sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. 

Minha atenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-me, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.

Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia- me a alma por dentro,  incerta, altera-me como a brisa aos perfis das copas. 

Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta. . . Para que há de um dia raiar?. . . 

Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer. Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Boio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é esse. ..

Surge mas não apaga esta, esta alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam. Que nítida de outra e de ela essa trêmula paisagem transparente!

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